quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Em cólicas

-Hell, o que porra é uma cólica?

Hell: Ângelo me chamava assim desde a oitava série. Eu estava tão contorcida de dor no sofá que aquilo soou como uma zoação com a minha cara; prontamente sentei para respondê-lo. Acendi um cigarro antes, lógico. Dei uns tragos, soltei a fumaça na direção da janela e comecei meu triste relato.

-Ouça bem, não vou falar duas vezes.

Cólica é uma dor como se algo grande, espinhoso e dançarino fosse sair de você, e você não sabe exatamente se vai ser por trás ou pela frente.
É quando você sente seu útero saltar de lugar, e a cada movimento o sangue jorra tão violento quanto as Cataratas do Iguaçu.
É sentir uma onda elétrica percorrer sua espinha e arrepiar os pêlos dos braços e das pernas.
É uma martelada naqueles ossinhos do joelho que faz as pernas tremerem.
É sentir que você está se afogando no próprio sangue, sufocada pela via respiratória errada.
É deitar, sentar, se abaixar, andar, apoiar as pernas no alto, e até ficar de cabeça pra baixo procurando uma posição confortável pro conjunto costas/pernas/bacia.
Por falar em bacia, você a sente quebrar ao menor toque.
É perder o dia estendida no sofá ou na cama em desespero.
É chorar.
É embolar feito empanado na cama em busca de uma posição confortável.
É tomar trocentos Buscopans e passar horas demente numa compressa morna.
É o remédio fazer efeito, você finalmente sentir alívio e dormir que nem um bebê.

-Isso é uma cólica. Você entende pelo que estou passando?

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Eterna


Queridíssima Rê Bordosa.

Angeli.

Sobre a ironia do tempo [3]

Anatômica.

Se o clima não estivesse tão quente, nem o quarto tão pequeno, nem o amor tão longe, nem as garrafas tão vazias, nem as carteiras de cigarro tão amassadas, nem a mãe tão perto, nem o trabalho tão tedioso, talvez Ana não quisesse explodir. Aquele forró horrível tocando ao longe, uma porcaria qualquer que ela chamava de fuleiragem music, dava-lhe vontade de ir até a janela e gritar pra qualquer filho da puta que passasse na calçada que desligasse aquela merda depreciadora do corpo feminino. Mas e Ana? E esse misto de coisas que se passavam na sua cabeça? E o tédio? A completa falta de emoção e cuidado consigo própria? E a vontade de sair na rua de camiseta e calça jeans só pra ver se ainda era desejável mesmo gorda, cheia de espinhas e celulite (era assim que se via no espelho, mas com certeza era exagero de sua mente deturpada)?
Tudo isso ia embora, ela só queria chorar. Talvez nem soubesse o motivo e isso a deixava ainda mais desesperada. Ana saiu, foi ao cine ver um curta, “O velho, o mar e o lago”. Ana chorou. Puta merda, Ana! Você também chora com cada besteira! E Ana nem ai. Queria ir pra casa, se arrependeu de sair e procurar estar no meio de tanta gente.
Voltou, enfiou-se no quarto, tão fundo que quando sua mãe entrou para chamar-lhe pro jantar sequer a viu encolhida num canto com o mp4 explodindo nos ouvidos. Pegou o telefone, ligou pra aquela melhor amiga que tava sumida, mas sempre atendeu seus chamados desesperados. Mais choro, reclamações, era um tal de “eu quero gritar” que ela não aguentava mais. E gritou.
Ana saiu do quarto um bagaço, com a maquiagem borrada, descalça, com o jeans desatacado e arrastou-se pro banheiro. Vomitou na privada, tomou um banho demorado, botou uma roupa limpa e dormiu.
No meio da noite, sangue. Muito sangue no short e na cama. Ana menstruou.
No banho Ana começou a rir quando lembrou que não queria explodir. Na verdade, era TPM.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Sobre a ironia do tempo [2]

Analítica.

Ana era uma pedra. Um cubo de gelo. Não, uma pedra mesmo, gelo derrete; Ana não derreteria nem no inferno. E Léo sabia disso. Tanto que quando Ana bateu no seu carro naquela manhã ensolarada de sábado ele nem dialogou muito quando ela foi descendo do carro assinando o talão de cheques, e perguntando quanto ele queria pelo dano causado. O cachorro dela, um dálmata, desceu do carro no seu encalço. Porém os cabelos vermelho-berrante dela não o deixavam olhar pra outra coisa que não fosse aquela silhueta quase atlética envolvida numa canga de praia azul.
-Mas você não vai nem discutir? Perguntar se eu estou louco ou cego?
-Tenho cara de quem tem tempo pra isso?
E ela foi embora. Cantando pneus e tudo. Os danos nem tinham sido tão grandes, mas só o fato de uma desconhecida ter batido no seu carro e sequer ter discutido lhe deixou intrigado. E foi pra casa pensando nela, em como encontrá-la, no que falar pra ela.
Ironicamente, Ana sequer lembrava da cara do infeliz do semáforo da rua 15. E se passaram quatro anos nessa ironia quando, ironicamente, Léo, distraído pensando na desconhecida, bateu na traseira de um Fox preto, com um macaquinho pendurado no pára-brisa. Dele, saiu uma mulher. E qual não foi sua surpresa quando reconheceu aqueles cabelos vermelho-berrante da pedra que havia batido em sua traseira quatro anos antes. A diferença é que essa falava. E falava muito.
-Você tá louco, seu filho da puta?! Não viu o semáforo vermelho?!
Ele estava atordoado. Não sabia se realmente era ela, sequer lembrava se o carro de quatro anos atrás era o mesmo. Só lembrava da cena, e do cachorro. Não precisou pensar muito pra lembrar que era um dálmata. E também não demorou muito pra um dálmata botar a cabeça do lado de fora da janela traseira, seguindo a dona com o nariz, como quem quisesse saber pra onde raios ela ia. Era ela, definitivamente. E Léo não esperaria quatro anos novamente.
-Quero ressarcimento, você entendeu? Meu carro não tem nem um mês e aparece um palhaço...
Ele a beijou. E todos os seus anseios foram embora.
Quatro anos se passaram. E eu acabei de receber o convite pro casamento dos dois.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Sobre a ironia do tempo.

Anacrônica.

Fora do tempo, fora de casa, Ana, que nunca havia fumado, bebido ou trepado, se vestia em um quarto estranho, numa cama estranha, onde um estranho dormia. Eram 7h da manhã de um sábado chuvoso. É... havia muito o que fazer. Meio atordoada, cambaleante com o peso do próprio corpo, fraca de tanta vodca, arrastou-se até o chuveiro, onde a água quente molhou-lhe os cabelos, a pele e as tatuagens. Vestiu-se, foi embora dali, pra onde não pretendia voltar, apesar de não saber onde exatamente era ali. No ônibus, muitas vozes, muitos olhares, alguns não tão amigáveis, outros indiferentes. Chuva. Escorre pelo vidro, deforma ruas, carros, postes e rostos. Ana, deformada, suja, e feliz.
Em casa, Ana toma seu café, acende seu primeiro cigarro. O primeiro depois do primeiro, que gesto mais estranho! Não liga. Liga. A TV. Alguém fala de enxurradas, desmoronamentos, comercial de café. Ela desliga, pega um livro, lê algo e dorme. No sofá mesmo, pra quê levantar?
Dias. Meses. Anos. Exames de rotina. Urina, fezes, prevenção, mamografia, ultra-som e sangue. A vaca da enfermeira era indelicada com a agulha, machucou. Não doeu, só machucou. E daí? Ana nem queria fazer aqueles exames mesmo, foi só pra tapar a boca da mãe. 4 dias pro resultado, posso voltar ao meu apartamento, doutor?
4 dias, dia 4. Ana foi buscá-los. Os exames? Não, antes tem os pães na padaria, e o café fresquinho da esquina. Ai vêm a vez dos exames. Tranquilidade. O médico abre, Ana mastiga um chiclete. A cara dele... nossa, as notícias não são boas. Anemia? Falta de vitaminas? Infecção urinária? Intestinal? Gastrite? Labirintite? Anorexia?
Não, Ana. Você tem HIV.
Logo Ana, que nunca havia fumado, nem bebido. Nem trepado.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A prostituta

18h, saída da BR 232 com a Caxangá. Ela me olha do muro onde está encostada. Fuma um cigarro barato e prende o isqueiro na calcinha por baixo da micro saia. O beco está quase deserto, com excessão dos carros que passam na BR perpendicular. Carrega na bolsa preservativos, anti concepcional, celular, um bloquinho, caneta, suas alegrias, tristezas, lágrimas e decepções. Será mais uma poetisa marginal? Uma relatadora de causos? Já consigo imaginar um título para seu próximo livro: “Memórias do Hotel Paraíso volume III”. Na bolsa e nos olhos, na bolsa dos olhos. Meu carro parou no semáforo e desde então ela me encara. Com olhos desafiadores, provocadores, tristemente insinuantes. Eu não sei se fecho o vidro, se continuo naquele momento tão íntimo entre dois estranhos, se pego o acostamento e fujo do trânsito e dos olhos devoradores da concubina da esquina do beco ao lado, se abro a porta do carro e a levo para um motel para me fazer feliz, ou se a levo para minha casa para fazê-la feliz. O semáforo abre, lentamente os carros se movem, ela acompanha o meu até certo ponto, quando pára e acena um adeus. Eu paro o carro, a luz da ré acende, consigo ver seus olhos surpresos e, mesmo louca de curiosidade pra ver meu rosto e saber minhas intenções, permanece parada em cima dos tijolos quebrados da calçada. É quando desisto. Ela não viveria sem essa vida. Eu não viveria sem ela. Melhor deixá-la enquanto minha obsessão não a sufoque.