Era uma manhã nublada de setembro. A chuva empodrecia a madeira da sacada enquanto a medíocre luz do dia iluminava parte da bagunça do apartamento. Para não acabar torcendo um tornozelo, acendeu a luz e, do jeito que estava, de calcinha de algodão e camiseta branca, foi preparar o café.
O café, fiel companheiro, escorria na cafeteira enquanto engolia o primeiro analgésico e acendia o primeiro cigarro do dia.
Cafeína, nicotina, só faltava música. Não. Música hoje não. Os miolos explodiriam.
O janelão da sacada e uma cadeira confortável. Pronto. Tava bom assim.
Antes do último gole de café, alguém bateu na porta. Obrigou-se a vestir um short pra atender. Pelo visor da porta, não tinha a menor idéia de quem era. Só sabia que era mulher. E baixinha. Talvez uma adolescente. Abriu a porta.
Não era a visão que esperava. Uma garota aparentando seus 17 anos, corpo atlético, as pernas molhadas à mostra pro baixo da saia jeans, uma camiseta preta com o "A" de Anarquismo e os cabelos curtos, com duas cores que se chocavam violentamente.
E os olhos. Olhos de um castanho intenso, olhos inteligentes e curiosos, olhos fascinantes, hábeis observadores(a essa altura, a Pequena, como preferiu lhe chamar, já havia notado metade da bagunça do apartamento).
-O que você quer?- De quem se tratava Ela já sabia
- Não sei. Talvez um pouco de desprezo e uma boa dose de realidade.
A resposta surpreendeu. Um motivo pra convidá-la pra entrar.
Ofereceu café, bolachas e até cigarro. Ela aceitou tudo, com seus olhos perseguindo-a, como se cada movimento pudesse ser copiado, como se cada expressão pudesse ser roubada, como se quizesse ser ela própria.
-Como me encontrou?- Ela perguntou.
-Talvez estivesse na hora de conversarmos. Não iria demorar muito pra gente ficar frente á frente.
-Você procurou saber se eu queria isso?
-Você faria o mesmo se quizesse me encontrar.
-Avisaria previamente.
Silêncio
-São da sua filha?- Perguntou a Pequena apontando pras bonecas espalhadas no tapete.
-Sim. Passou o fim de semana comigo.
-Sabe por que a perdeu?
- O juíz não confiaria uma criança a uma viciada. Preferiu o troglodita do pai dela.
Silêncio.
-Você já se perguntou por que existe?- Ela perguntou
-Fui a alegria dos meus pais. Até crescer e ter uma mente considerada doente.
Silêncio
-Acha que toda essa merda que acontece comigo vai acabar um dia?- Perguntou a Pequena
-Não sei. E não sei se quero testemunhar quando isso acontecer.
-Você tem objetivos?
-No momento, quero mais café.
Ela foi pra cozinha e voltou com uma xícara e outro cigarro aceso.
-E também- Ela continuou- tenho que ir trabalhar ao meio dia.
Silêncio.
-Eu vim aqui porque preciso fugir às vezes.- Falou a Pequena.
-Vai acabar ficando igual a mim.
-Não seria tão ruim assim.
-Não se você não tivesse só 17
-Como sabe?- A Pequena estava surpresa; ela, impassível.
-Eu não quero ser seu refúgio. Você que é o meu- Ela falou.
-Pelo menos quando você está bêbada, não é?
-E se a gente tentar viver uma sem a outra?- Ela propôs.
-Você sabe que é impossível. Você quer se livrar de mim, mas não pode. Estou impregnada na sua essência.
-Nem você de mim- Ela falou- Eu falo por você.
-Temos que conviver. Eu tenho que parar de te adimirar. Não quero ser como você.- A Pequena chorava.
Ela falou enquanto soltava a fumaça do cigarro:
-Não dá mais. Você tem até meu jeito de fumar, pirralha.
-Será que podemos conviver amigavelmente?
-Só quando você precisar se expressar.
-Como é que a gente consegue essa sincronia de pensamentos?
-Eu sou seu lado podre. Ou pelo menos o que ele será.
-Exato. Foi por isso que eu vim aqui.
-Não vou cuidar de você. Já tenho uma filha pra me preocupar. Mas realmente, tenho que adimitir que esse encontro era necessário.
Olhavam-se em silêncio através da penumbra da sala. Os corações dispararam freneticamente. E, cortando o silêncio ensurdecedor, falaram em uma só voz:
-Somos parte uma da outra.
A Pequena enfiou o cigarro no cinzeiro, vestiu a blusa vermelha de mangas compridas, calçou os all- stars, apanhou a mochila e saiu do apartamento com um sorriso frouxo e murmurando um "a gente se vê".
Com certeza. Da próxima vez que Ela ficasse bêbada.
7 comentários:
Quase relatas a vida de um ser que te declara, no momento...
Espontâneo e instantâneo...
Rumina guerra e paz em palavras...
Precioso teu texto.
"Parece cocaína", mas é só vereidade.
Fique bem.
Sophia
Todo mundo tem seu lado podre, com o qual precisa se comunicar às vezes...
E isso, ao contrário do que muitos pensam, faz bem... pq não somos maniqueístas e não cremos que só há duas faces no mundo: uma boa e uma ruim... Mtas vezes as duas (se existem) se confundem, e até trocam de função.
E quem entende?
"Dopada até a morte!"
Paradoxalmente louco...
seus reflexos são muito bem relatados.
ps.:o motivo de minha empatia não é novidade alguma.
Gregório de Matos - Vossa icógnita
escreva um livro
Saudades dessas almas...saudades.
Se nesse mundo, que é obviamente relativo apenas a você, fossi repassado ou transposto nesse mundo-o real- o que seria das pessoas não impressionistas?
Nem isso, o que seria das coisas que não são impressões?
Talvez um mundo, introspectivo assim, deva ficar apenas contidos a pessoas sensíveis como você.
Beijos de café
seu passado vindo a tona.
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